Crônica da semana/ UM EXAGERO DE ESPECIALIZAÇÃO

Wagner Fontenelle Pessôa                         
Houve um tempo em que as famílias tinham um médico da sua confiança, que atendia e assistia — com muita frequência, indo à casa dos clientes — do filho caçula da prole aos avós. De uma enxaqueca que atormentasse os mais velhos até a pneumonia de uma criança, passando pela gravidez e parto da mamãe, todas as aflições e todos os males que afetassem a saúde daquele clã eram resolvidos com a presença e a intervenção do mesmo doutor.
            Mas, com o passar do tempo e os avanços da Medicina, essa configuração de cuidados e assistência à saúde da família foi entrando em declínio, embora, mais recentemente, os organismos responsáveis pela saúde pública e até os planos de saúde estejam tentando retomar esse acompanhamento, digamos, mais personalizado e familiar, dos profissionais aos pacientes.
            De qualquer maneira, não será possível retornar ao sistema anterior e, cá prá nós, isto também não seria desejável. Porque não há mais médico no mundo que conseguisse ter o conhecimento de todo o histórico referente à saúde de famílias inteiras atendidas por ele. E nem seria adequado fazer diagnósticos examinando a língua, o branco dos olhos ou a coloração da amostra de urina colhida numa pipeta, que o facultativo observava contra a luz.
            Vivemos o tempo dos diagnósticos fornecidos pelos laboratórios, em grande número de casos, das especialidades e das especializações. E a medicina moderna nos
leva a consultar um profissional para cada parte do corpo que nos esteja incomodando. Além das grandes especialidades — como a cardiologia, a oftalmologia, a dermatologia, a pediatria, a cardiologia e tantas outras mais — ainda existem as subespecialidades, que desdobram todas elas em áreas ainda mais específicas do saber médico.
            No campo da Ortopedia, por exemplo, existem os médicos que só cuidam de problemas relativos à coluna vertebral, aqueles só tratam de problemas que dizem respeito à estrutura óssea dos pés, além de outros que só recebem pacientes com problemas nos ossos das mãos. E aquela especialidade, antes chamada de Oftalmotorrinolaringologia, agora desdobrou-se em, pelo menos, duas: a Oftalmologia (relativa aos olhos e à fisiologia da visão) e a Otorrinolaringologia (referente aos ouvidos, nariz e garganta).
            Pois diante desse quadro de especialização acentuada no exercício da medicina, foi que o sujeito amanheceu, certo dia, com uma sensação bem dolorida num dos testículos, que imaginou tratar-se de alguma pressão excessiva que ele mesmo produzira, durante a fase de sono mais profundo, durante aquela noite. Acreditando que aquilo passaria naturalmente, não tomou nenhuma providência e, no correr do tempo, a tal dor foi ficando mais intensa.
            Mesmo assim foi trabalhar, mas não saiu mais de casa após o almoço, incomodado pelo desconforto que aquilo lhe causava. E já sem encontrar nenhuma posição em que a dor aliviasse, acabou telefonando a um amigo, que lhe disse, depois de ouvi-lo:
            — Marcondes, você deve estar é com uma bruta orquite! Trate logo de procurar um médico, que isso pode se complicar. Conheço um especialista que já me atendeu certa vez e resolveu o meu problema em pouco tempo. O consultório dele fica lá no quarto andar do Edifício Central. Não me lembro o número da sala, mas é fácil. Saindo do elevador é a segunda porta à direita.
            Como a dor já estivesse muito forte e ainda aumentando, o tipo nem perdeu tempo. Meteu-se numa calça de moletom, com o máximo cuidado para não pressionar a bola que estava inchada, chamou um taxi e mandou tocar para o Edifício Central. Mas a cada solavanco do carro, ele sentia como se levasse um chute nos "quibas". Ia ao inferno e voltava, de tanta dor que sentia!
            Assim, ao descer em frente ao prédio, já meio desorientado pela dor, em lugar de apertar o botão do quarto andar, apertou foi o do terceiro. Quando a porta se abriu, saiu do elevador, indo diretamente à segunda porta, como lhe indicara o amigo... E entrou no escritório de um advogado. Ao vê-lo com aquela cara de emergência, o rábula lhe perguntou no que poderia ajudá-lo e a resposta veio sem rodeios:
            — Doutor, eu estou com uma dor terrível no meu testículo esquerdo, que já está completamente inchado!
            Percebendo que o consulente havia se enganado de endereço, o advogado explicou:
            — Infelizmente, meu caro, eu não posso fazer nada quanto a isto... A minha especialidade é o Direito!
            Indignado, Marcondes tornou a se levantar e saiu da sala, andando com as pernas separadas e protestando contra a excessiva especialização do profissional:
            — Vai ser especializado, assim, no raio que o parta!  Se cuida do direito, por que não pode cuidar do esquerdo também?!

            Sem compreender bem o que o outro pretendera lhe dizer, de fato, aquilo parecia mesmo ser um exagero de especialização. 

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